A crise fiscal e a ascensão dos fundos
Entender a crise fiscal brasileira passa por dois conceitos usuais, que, quando postos no mundo jurídico, carregam uma enorme complexidade: receita e despesa. As receitas públicas são os valores que o Estado arrecada por meio da cobrança de tributos e que aufere através da exploração de seu próprio patrimônio (privatizações, concessões e alienações, por exemplo). Já as despesas correspondem a forma como o governo alocará esses recursos.
Para organizar as contas, o Estado elabora o orçamento público, instrumento legal que contém a estimativa das receitas e a fixação das despesas. Um conceito está diretamente ligado ao outro: a perda de arrecadação implica na dificuldade em implementar as políticas públicas previstas no plano de governo.
Os fundos tornaram-se importante ferramenta jurídica dos Estados para a proteção de suas pretensões arrecadatórias. Na legislação brasileira, o conceito de fundo corresponde ao produto de receitas especificadas e que, por lei, vinculam-se à realização de determinados objetivos ou serviços.[1] Como se pode notar, estamos diante de uma definição simples, que, no entanto, está sendo deturpada pelas legislações estaduais.
No campo do agronegócio – um dos principais focos dos gestores estaduais -, o início desse problemático movimento dos fundos teve como ponto de partida o Fundersul no Estado do Mato Grosso do Sul em 1999. Logo em seguida, o Estado vizinho, Mato Grosso, também criou o Fethab nos anos 2000.
A Constituição também não ficou de fora: a Emenda Constitucional n. 31/2000 previu que os Estados “devem instituir Fundos de Combate à Pobreza” e que “poderá ser criado adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do ICMS, sobre os produtos e serviços supérfluos” para o financiamento dos fundos. Amparado nessa previsão constitucional, o Estado de Goiás, por meio da Lei n. 14.469/2003, instituiu o PROTEGE, um fundo de proteção social mantido por contribuições e doações dos contribuintes de ICMS.
Passada essa “primeira geração” de fundos, o Convênio ICMS 42, de 03 de maio de 2016, inaugurou uma estratégia ainda mais ousada – para não dizer juridicamente questionável – no movimento. Essa deliberação normativa do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) autorizou que os Estados condicionassem a fruição de benefícios fiscais de ICMS ao depósito de, no mínimo, dez por cento do respectivo benefício aos fundos especiais de desenvolvimento econômico e de equilíbrio fiscal.[2]
Estava dada a largada para a criação de novos fundos preocupados com o aumento na arrecadação estadual. Os Estados limitaram os incentivos concedidos aos contribuintes, afirmando que tais figuras jurídicas seriam mobilizadas para o enfrentamento de crises temporárias ao regime fiscal. No entanto, com o passar do tempo, o contribuinte percebeu que os governantes não pretenderiam abrir mão dessa fonte de recursos.
Por que esses fundos são inconstitucionais?
Motivos jurídicos para a declaração de inconstitucionalidade dos fundos são abundantes. Contudo, o bom jurista sabe que a discussão sobre receitas e despesas públicas envolve uma série de regras jurídicas, mas, ainda mais importante, rege-se pelo mundo da política. Por isso, o argumento efetivo é aquele que detém a argúcia necessária para agregar os argumentos da política e do direito. Exigência que, a propósito, ainda não foi alcançada.
A questão a ser discutida pode ser analisada a partir de dois campos autônomos: i) a forma como os fundos cobram esses valores é problemática sob a ótica do direito tributário, isto é, do ponto de vista da arrecadação; ii) o modo como esses recursos serão gastos viola preceitos primários do direito financeiro, ou seja, a destinação torna-se questionável.
No campo tributário, o tópico central do debate está na natureza jurídica das contribuições exigidas pelos fundos estaduais. O Fisco defende a tese de que esses valores arrecadados não possuem natureza tributária, já que essas contribuições não são compulsórias.
Os Estados assentam sua posição com o precedente iniciado na ADI 2056, julgada definitivamente em 2007, que permite o afastamento de todas as regras protetivas ao contribuinte previstas no regime constitucional tributário brasileiro, já que a contribuição analisada – devida ao Fundersul – não poderia ser confundida com tributo.
Do lado oposto, os contribuintes lutam contra a engenhosidade jurídica dos Estados: uma contribuição não no sentido da gramática jurídico-tributária, mas no sentido de uma retórica da voluntariedade.
Alguns juristas defendem que os fundos constituíram novos impostos, porque, na prática, criaram arrecadação para os Estados na ordem de 10% do ICMS que seria descontado pelos incentivos. Contudo, não há dúvidas que a Constituição (art. 154, I) reserva à União a competência para instituir, mediante lei complementar, novos impostos.
Outros especialistas ressaltam a absoluta semelhança entre as regras-matrizes do ICMS e das contribuições. Argumento que ganha reforço após o voto do ministro Barroso na ADI 5635, reconhecendo a natureza jurídica de ICMS das contribuições criadas pela legislação estadual do Rio de Janeiro sobre fundos e, por consequência, a exigência de se observar a não cumulatividade aos depósitos em questão.
O certo é que alguns argumentos, como a violação dos princípios da anterioridade (art. 150, III, b e c, CF) e da legalidade (art. 150, I, CF) ou regras como a impossibilidade de cobrança do ICMS nas exportações de mercadorias para o exterior (art. 155, §2º, X, a, CF) e a observância da impossibilidade de se modificar isenções concedidas de modo oneroso (art. 178 do CTN e Súmula 544 do STF) somente ganharão força na pauta judiciária a partir do momento em que a natureza tributária dessas contribuições ficar evidente.
Da ótica do direito financeiro, as violações às normas constitucionais também não demandam muito esforço para serem notadas. Em primeiro lugar, o produto de sua arrecadação fica restrito aos cofres dos Estados e, assim, esses recursos monopolizados não integram o montante dividido com os Municípios, violando o art. 158, IV, CF.
Ainda mais relevante, por expressa vedação constitucional, o art. 167, IV, CF, determina que a receita de impostos não pode estar vinculada a fundos. Em relação aos fundos mais recentes da “segunda geração” pós-convênio, destaca-se a recente proibição de criação de fundos, prevista pela Emenda Constitucional n. 109/2021, quando seus objetivos puderem ser alcançados mediante a vinculação de receitas orçamentárias específicas ou mediante execução direta por programação orçamentária e financeira de órgão ou entidade da administração pública.
Nesse ponto, o Fundo Estadual de Infraestrutura de Goiás (FUNDEINFRA), constituído pela Lei Estadual n. 21.670/2022 e voltado para a captação de recursos financeiros destinados a infraestrutura agropecuária, rodovias e aeródromos, representa um dos mais polêmicos exemplos de fundo da “segunda geração”. Políticas públicas de infraestrutura, que deveriam ser objeto de programação orçamentária ordinária, passam a ser mantidas com recursos de um fundo especial sustentado por contribuições “voluntárias”.
Não há a intenção de se esgotar os argumentos jurídicos contra os fundos estatais. O leitor que tenha o mínimo de familiaridade com as limitações ao poder de tributar do Estado – imunidades e princípios – verificará que os caminhos argumentativos são múltiplos.
Na verdade, interessa registrar que a estratégia jurídica perante os julgadores, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, que se torna cada vez mais protagonista nas discussões tributárias, é a chave para a segurança contábil-tributária e financeira dos contribuintes.
Qual estratégia jurídica adotar?
Em evento promovido pelo Comitê Tributário da Sociedade Rural Brasileira sobre o impacto dos fundos no agronegócio, realizado no dia 10 de fevereiro de 2023, o professor Fernando Scaff destacou que os contribuintes podem seguir duas estratégias específicas.
Caso se pense em uma estratégia concentrada, o alvo a ser atacado está no Convênio ICMS 42/2016, que fornece amparo normativo aos fundos da dita “segunda geração”. Tal posição encontra a resistência do STF, o qual vem evitando analisar os argumentos centrais do debate, ora dizendo que se trata de reanálise de provas (ARE 1.344.693/RJ), ora se valendo do argumento de que se está diante de análise de legislação local (RE 1.392.557/SP).
No entanto, deve-se observar que uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado, declarando a constitucionalidade do referido Convênio, seria capaz de validar e legitimar, de uma vez só, todos os fundos questionados em cada unidade federativa. A busca por vulnerabilidades específicas nessas contribuições estaduais ficaria ainda mais difícil.
Já na estratégia fragmentada, o ataque jurídico seria local. Determinado contribuinte, insatisfeito com as contribuições instituídas pelo governo estadual, poderia ajuizar um mandado de segurança, por exemplo, buscando a defesa de seu direito líquido e certo em não ser compelido a pagar o valor referente às contribuições.
O cenário composto por teses tributárias em aberto nos tribunais superiores e por múltiplas alternativas jurídicas produz um ambiente econômico de incertezas. O papel da advocacia especializada na identificação dos melhores argumentos, das oportunidades processuais e das movimentações políticas torna-se cada vez mais fundamental para a gestão de tributos.