Em maio de 2021, foi publicada a decisão da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49, na qual restou definido que “o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual”.
Com essa decisão, o STF reafirmou a jurisprudência pacífica do Tribunal, consolidada, inclusive, na tese de repercussão geral do Tema 1099 (ARE nº 1.255.885/MS), segundo a qual “não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”.
Ratificou-se, ademais, o entendimento uniforme do STJ, já sumulado (Súmula 166) e reafirmado em sede de recursos repetitivos (tema repetitivo 259), o qual dispõe que “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.
Pode-se afirmar, diante desse cenário, que o resultado do julgamento da ADC 49 não foi uma surpresa. Contudo, seus possíveis desdobramentos vêm causando preocupação tanto aos contribuintes quanto ao Fisco, que aguardam ansiosos o julgamento dos embargos de declaração opostos pelo Estado do Rio Grande do Norte.
O recurso interposto pelo Fisco tem como principal finalidade a modulação de efeitos, isto é, a atribuição de eficácia prospectiva à decisão, de modo que abarque apenas as situações futuras.
Contudo, além da modulação de efeitos, espera-se que o STF se pronuncie sobre outros aspectos práticos relativos ao alcance de sua decisão, os quais, se não esclarecidos, poderão gerar novos entraves judiciais.
É o caso, por exemplo, da possível necessidade de estorno dos créditos de ICMS decorrentes das operações de transferência entre estabelecimentos do mesmo titular, tendo em vista a “não incidência” do imposto na saída de mercadorias. Tal necessidade, de acordo com o Fisco, decorreria do disposto no artigo 155, §2º, II, “b”, da Constituição Federal[1], segundo o qual a isenção ou não incidência acarreta a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
No entanto, existem argumentos suficientes para sustentar que o estorno do crédito defendido pelo Fisco viola frontalmente o princípio da não-cumulatividade.
Ao se analisar o teor da decisão do STF, afinal, depreende-se que o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte sequer caracteriza a operação de saída, já que não se tem verdadeira circulação comercial, mas mera mudança física de localidade.
Dessa forma, inexistindo circulação de mercadoria, não há que se falar em aplicação do art. 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal.
Em outras palavras, o deslocamento em questão revela-se juridicamente irrelevante para fins de ICMS, sendo inapto a atrair a aplicação da referida norma constitucional.
Foi nesse sentido o voto do Ministro Edson Fachin, relator dos embargos de declaração, que, além de defender a modulação de efeitos da decisão, para que tenha eficácia a partir do próximo exercício financeiro, salientou que “a decisão proferida não afasta o direito ao crédito da operação anterior conforme jurisprudência deste E. STF (RE 1.141.756, Tribunal Pleno, relator Marco Aurélio, j.28.09.2020, DJ 10.11.2020) ao que, em respeito ao princípio da não-cumulatividade, restam mantidos os créditos da operação anterior”.
No mesmo sentido, o Ministro Luís Roberto Barroso deixou claro, em seu voto, que a impossibilidade de incidência do ICMS sobre a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular decorre da inexistência de competência tributária para instituir tal hipótese. Essa situação, distinta da não incidência prevista no art. 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal, impossibilitaria a anulação dos créditos relativos às operações anteriores.
Nesse cenário, defendeu também a modulação de efeitos da decisão, ainda que de modo ligeiramente distinto do proposto pelo Ministro Fachin, já que sustentou a ressalva aos processos pendentes.
Segundo Barroso, o principal escopo da eficácia prospectiva seria conferir um prazo para os Estados adaptarem suas legislações a fim de permitir a transferência de créditos entre estabelecimentos, já que, a partir da declaração de inconstitucionalidade proferida na ADC 49, tal sistemática teria ficado desprovida de regulamentação. Propôs o Ministro, ademais, que eventual falta de regulamentação garantiria aos contribuintes o direito à transferência, em observância à não-cumulatividade, sob pena de haver acúmulo de créditos de ICMS no remetente e de débitos no destinatário.
Para além disso, outro ponto a ser definido pelo STF diz respeito à extensão da decisão proferida na ADC 49, especialmente no que tange à inconstitucionalidade do art. 11, §3º, II, da Lei Complementar nº 87/1996[2], que prevê que cada estabelecimento do mesmo titular é autônomo.
Nos embargos de declaração opostos pelo Rio Grande do Norte, requereu-se que tal inconstitucionalidade fosse declarada parcial, sem redução de texto, de modo a afastar a incidência da norma apenas sobre a situação da transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, e não sobre as demais situações jurídicas. Caso contrário, a autonomia dos estabelecimentos poderia ser suprimida.
O Ministro Fachin, a despeito de ter rejeitado tal pedido, foi categórico ao afirmar que o Tribunal “declarou a inconstitucionalidade do referido dispositivo para fins de cobrança do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de titularidade da mesma pessoa jurídica, não repercutindo em deveres instrumentais, ao que inexistente omissão a ser suprida”.
O Ministro Barroso, por sua vez, entendeu pela necessidade de aclarar a decisão embargada, elucidando que, de fato, a inconstitucionalidade declarada pela Corte fora parcial. Segundo o Ministro, afinal, a autonomia dos estabelecimentos seria muito mais ampla do que o objeto da ADC, constituindo a própria sistemática de apuração do imposto ao impor o cumprimento das obrigações principais e acessórias por cada estabelecimento.
Diante desse cenário de verdadeira insegurança jurídica, espera-se que o julgamento dos embargos de declaração opostos no bojo da ADC 49 não apenas defina o momento a partir do qual a decisão do STF terá eficácia, mas também resolva a discussão acerca da manutenção dos créditos decorrentes da não-cumulatividade e delimite a extensão da declaração de inconstitucionalidade proferida.
No entanto, os contribuintes e o Fisco terão que aguardar um pouco mais pela definição dessas questões, tendo em vista a interrupção do julgamento pelo Ministro Gilmar Mendes, que, na sessão do dia 17/12, apresentou pedido de destaque. Assim, o julgamento deverá ser reiniciado em plenário presencial, ainda sem data definida e já com a presença do novo Ministro, André Mendonça.