Funrural: entenda os temas afetados pelo STF

A inconstitucionalidade da contribuição devida pelo produtor rural sobre a receita bruta é objeto de três temas de repercussão geral, dois deles ainda pendentes de solução.

Por Matheus Paro — , 06 de julho de 2022
Em: STF

A contribuição ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) é uma contribuição à seguridade social devida pelo produtor rural, calculada sobre a receita bruta da comercialização de sua produção e destinada ao custeio da previdência social.

Regulamentado à luz da Emenda Constitucional nº 20/1998, o referido tributo foi instituído para três contribuintes distintos, todos abrangidos pelo conceito de produtor rural, quais sejam: pessoa física (art. 25 da Lei 8.212/1991)[1], pessoa jurídica (art. 25 da Lei 8.870/1994)[2] e agroindústria (art. 22-A da Lei 8.212/1991)[3].

Desde sua instituição, contudo, a contribuição ao Funrural tem sido objeto de uma longa controvérsia jurídica em âmbito jurisprudencial e doutrinário, cujo cerne é a própria constitucionalidade do tributo e que envolve regras e princípios basilares do direito tributário. Trata-se de um debate que vem sendo travado há anos pelos tribunais superiores e cuja solução poderá impactar significativamente as contas da União.

Com efeito, diante de sua relevância que ultrapassa o âmbito jurídico, a discussão acerca da (in)constitucionalidade da contribuição ao Funrural teve sua repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões, originando, dentre outros, os Temas 281, 651 e 669.

Os dois primeiros temas discutem a constitucionalidade das contribuições à seguridade social devidas pela agroindústria (RE 611.601 – Tema 281) e pelo produtor rural pessoa jurídica (RE 700.922 – Tema 651),  incidentes sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção. Todavia, com repercussão geral reconhecida desde 2010 e 2013, respectivamente, ambos os recursos permanecem sem solução pelo STF.

Por sua vez, o tema 669 foi o único já definitivamente julgado pela Suprema Corte, resultando em uma primeira derrota dos contribuintes. Em seu leading case, Recurso Extraordinário nº 718.874, deliberou-se acerca da constitucionalidade da contribuição ao Funural a ser recolhida pelo empregador rural pessoa física, conforme previsão do art. 25 da Lei 8.212/91, com a redação dada pela Lei ordinária 10.256/2001.

No julgamento realizado em 2017, contrariando posicionamento anteriormente manifestado pelo próprio Tribunal[4], o STF decidiu pela constitucionalidade da referida contribuição, fixando a seguinte tese: “É constitucional formal e materialmente a contribuição social do empregador rural pessoa física, instituída pela Lei 10.256/2001, incidente sobre a receita bruta obtida com a comercialização de sua produção”.

Por maioria apertada de 6 a 5, prevaleceu o entendimento de que, com o advento da Emenda Constitucional 20/98, que alterou o artigo 195 da Constituição Federal para prever a receita bruta como base de incidência das contribuições sociais, não haveria qualquer inconstitucionalidade na instituição da contribuição em questão por lei ordinária – no caso, pela Lei 10.256/2001.

Diante desse julgamento, surge uma questão relevante a ser resolvida: em que medida a decisão do tema 669 pode refletir no julgamento dos demais temas ainda pendentes de apreciação pelo STF? Ou, mais especificamente: os fundamentos utilizados pelo STF no julgamento do RE 718.874, que confirmou a constitucionalidade da contribuição ao Funrural devida pelo produtor rural pessoa física, são aplicáveis aos casos da agroindústria e do produtor rural pessoa jurídica?

A resposta a essa indagação não é clara, porém, certamente não se pode afirmar que a decisão proferida pelo STF no tema 669 implicará, necessariamente, em solução análoga para os casos ainda não resolvidos. Isso, porque, apesar da semelhança entre os aspectos discutidos nos três temas, as particularidades que envolvem os contribuintes enquanto pessoas jurídicas – sejam agroindústria ou não – podem ser determinantes para a definição de uma solução distinta.

Destaca-se, nesse sentido, o fato de que os produtores rurais pessoas jurídicas e agroindústrias já recolhem uma contribuição à seguridade social incidente sobre seu faturamento e destinada ao financiamento da Previdência, a Cofins, fundamentada no art. 195, I, “b”, da Constituição Federal[5]. Dessa forma, ao instituir a Contribuição ao Funrural sobre a receita bruta de tais contribuintes, fundamentada no mesmo dispositivo, o legislador ordinário teria estabelecido cobrança tributária em duplicidade.

Em outras palavras, considerando que, segundo o próprio STF, o conceito de receita bruta e faturamento são equivalentes, as Leis nº 8.870/1994 (art. 25) e nº 8.212/1991 (art. 22-A) teriam instituído nova contribuição sobre fato gerador e base de cálculo idênticos aos da Cofins, incorrendo, assim, em bis in idem. Trata-se do principal argumento defendido pelos produtores rurais nos Recursos Extraordinários 611.601 (Tema 281) e 700.922 (Tema 651).

Segundo os contribuintes, apesar de existirem hipóteses de bis in idem constitucionalmente legitimadas, como, por exemplo, a Contribuição para o PIS (também incidente sobre o faturamento), este não seria o caso da Contribuição ao Funrural, cuja criação careceria de fundamento constitucional autônomo e, portanto, desvirtuaria as rígidas normas de competência fixadas pelo art. 195, I, da Constituição Federal[6], já plenamente exercidas e esgotadas pelo legislador ordinário.

Nesse sentido, diante da estrita delimitação da competência tributária relativa ao custeio da seguridade social, defende-se que a única forma de instituir legitimamente a referida contribuição seria por meio de lei complementar, em respeito à exigência contida no art. 195, § 4º, combinado com o artigo 154, inciso I, ambos da Constituição[7]. Seria o caso, afinal, da criação de uma nova fonte de custeio para a seguridade social, o que suscitaria a necessidade de observância da regra de competência residual estabelecida pelos referidos dispositivos.

Mesmo nessa hipótese, contudo, não seria possível eleger o faturamento ou receita bruta como fato gerador e base de cálculo da contribuição, tendo em vista a proibição veiculada pelo inciso I do art. 154.

Além dessa argumentação, imperioso ressaltar um fundamento específico trazido no RE 611.601 (Tema 281), relativo às agroindústrias, que diz respeito à violação ao princípio da isonomia previsto no art. 150, II, da Constituição Federal[8].

O motivo de tal violação seria o tratamento desigual conferido a contribuintes que se encontram em mesma situação, consubstanciado pela maior oneração da receita bruta das agroindústrias em relação às demais indústrias estabelecias no país. Estas, afinal, contribuem à seguridade social apenas por meio da Cofins e da Contribuição ao PIS, e não haveria qualquer motivo racional para justificar a participação mais intensa das agroindústrias no sistema da seguridade social.

A União, por sua vez, defende a existência de autorização para a instituição das contribuições em questão, tendo em vista que o art. 195, I, da Constituição Federal, prevê a receita bruta como uma das possíveis bases de incidência para as contribuições à seguridade social. Por esse motivo, inclusive, seria dispensável a instituição por meio de lei complementar, não se tratando de nova fonte de custeio da seguridade social. Argumenta, por fim, a inexistência de óbice à coincidência das bases de cálculo dos tributos discutidos com a da Cofins e da Contribuição ao PIS.

Assim, torna-se clara a existência de aspectos bastante específicos nos recursos que discutem a inconstitucionalidade da contribuição ao Funrural devida pelo produtor rural pessoa jurídica (RE 700.922 – Tema 651) e pela agroindústria (RE 611.601 – Tema 281), que os diferenciam do caso paradigmático do produtor rural pessoa física. Dessa forma, é possível que o STF altere sua posição anterior e, desta vez, decida favoravelmente ao contribuinte.

Não há, contudo, previsão de quando os referidos julgamentos terão fim. No RE 700.922, o placar marca 2×1 a favor da inconstitucionalidade da cobrança direcionada ao empregador rural pessoa jurídica, com votos dos Ministros Marco Aurélio (relator) e Edson Fachin nesse sentido, contra Alexandre de Moraes, que se posicionou favoravelmente à União. Todavia, desde o pedido de vista pelo Ministro Dias Toffoli em 03 de setembro de 2020, o julgamento não foi retomado.

O RE 611.601, por sua vez, havia sido incluído na pauta virtual do STF para o dia 05 de maio, porém foi posteriormente excluído do calendário de julgamento e não há previsão para retornar à pauta.

Por fim, não há dúvida do enorme impacto que resultará de tais julgamentos, o qual não se resume ao montante que poderá ser ressarcido aos contribuintes caso a inconstitucionalidade das contribuições seja declarada, mas se estende, também, à definição de questões basilares relativas à competência e aos princípios tributários.


[1] Lei 8.212/1991. Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de (...) (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 2001);

[2] Lei 8.870/1994. Art. 25. A contribuição devida à seguridade social pelo empregador, pessoa jurídica, que se dedique à produção rural, em substituição à prevista nos incisos I e II do art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, passa a ser a seguinte: (...) (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 2001);

[3] Lei 8.212/1991. Art. 22A. A contribuição devida pela agroindústria, definida, para os efeitos desta Lei, como sendo o produtor rural pessoa jurídica cuja atividade econômica seja a industrialização de produção própria ou de produção própria e adquirida de terceiros, incidente sobre o valor da receita bruta proveniente da comercialização da produção, em substituição às previstas nos incisos I e II do art. 22 desta Lei, é de: (...) (Incluído pela Lei nº 10.256, de 2001).

[4] Recursos Extraordinários 363.852 (Relator: Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Julgado em 03/02/2010) e 596.177 (Relator: Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, Julgado em 17/09/2009, Tema 202 de Repercussão Geral).

[5] (CF/88) Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (...) b) a receita ou o faturamento;

[6] (CF/88) Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro;       

[7] (CF) Art. 195. (...) § 4º A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.

(CF) Art. 154. A União poderá instituir: I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;

[8] (CF) Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;