Linha do tempo da tributação dos softwares no STF e os desafios do futuro

O estudo da evolução jurisprudencial da Corte Superior sobre os softwares evidencia a dificuldade de o direito lidar com a tecnologia

Por Gustavo Roseira — , 30 de June de 2022
Em: STF

A sofisticação crescente das tecnologias digitais impõe, cada vez mais, uma resposta rápida por parte da legislação, especialmente tributária. Mesmo assim, é evidente que não há como o legislador manter-se atualizado com o constante avanço tecnológico.

No caso da tributação dos softwares, esse descompasso motivou uma série de discussões, dentre as quais destaca-se o imbróglio entre Estados e Municípios, que se alongou por mais de 20 anos no Supremo Tribunal Federal, tendo fim quando se sedimentou o entendimento de que o ISS incide nas operações com softwares.

Apesar da resolução, analisar a decisão do STF, bem como as principais discussões que cercam a tributação dos softwares, permite ir à fundo no funcionamento desse tipo de tecnologia, bem como compreender os desafios que a legislação tributária enfrenta na adaptação à chamada economia da internet.

  1. A origem da controvérsia

O cerne da discussão reside na dificuldade de se enquadrar a venda de softwares nos critérios materiais da regra-matriz de incidência do ISS e do ICMS.

Nesse sentido, há quem entenda que a incidência deve ser do primeiro, tendo em vista a maior proximidade com o núcleo de “prestar serviço”. Outra parte da doutrina[1], assim como parte da jurisprudência, entende que o ICMS deve incidir sobre essas operações, que se tratariam, portanto, de circulação de mercadorias[2].

Em 1998, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 176.626/SP, de Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence. No julgamento da apelação que motivou o recurso, interposta por uma empresa de processamento de dados, o Tribunal de Justiça decidiu pela incidência de ISS, sob o fundamento de que a legislação compreendia as operações de aquisição de softwares como integrantes de relação contratual de licenciamento ou de cessão de direitos, até pela intrínseca relação com a proteção do direito autoral. Irresignado com a decisão, o Estado de São Paulo ingressou com recurso especial e extraordinário visando a sua reforma.

Ao apreciar o recurso extraordinário, o STF inaugurou importante distinção entre os chamados “softwares de prateleira” e os “softwares por encomenda”. A diferença conceitual foi importada do português Rui Saavedra[3], cuja classificação distinguia os softwares em três tipos: (i) programas standard, que, na opinião do autor, constituíam pacotes de programas bem definidos e estáveis, concebidos para serem distribuídos para uma pluralidade de usuários, visando a mesma função ou aplicação, por isso mesmo distribuídos off the shelf (por prateleira); (ii) os programas por encomenda e (iii) os programas adaptados ao cliente. No caso dos dois últimos, a principal característica estava no fato de que não eram comercializados como um produto pronto, ao contrário, eram continuamente adaptados, corrigidos, melhorados, a fim de possibilitar uma melhor resposta às necessidades.

Como resultado, o STF, pode-se dizer de maneira incidental, já que não adentrou no mérito do recurso, utilizou a classificação mencionada para estabelecer distinção em relação aos softwares off the shelf, com indidência de ICMS, tendo em vista que a relação jurídico-tributária se daria entre o usuário e o invólucro cujo conteúdo envolve o software sem prestação de serviços:

De fato, o comerciante que adquire exemplares para revenda, mantendo-os em estoque ou expondo-os em sua loja, não assume a condição de licenciado ou cessionário dos direitos de uso que, em consequência, não pode transferir ao comprador: sua posição, ali, é a mesma do vendedor de livros ou de discos, que não negocia com os direitos do autor, mas com o corpus mechanicum de obra intelectual que nele se materializa. Tampouco, a fortiori, a assume o consumidor final, se adquire um exemplar do programa para dar de presente a outra pessoa. E é sobre essa operação que cabe plausivelmente cogitar da incidência do imposto questionado.

A distinção é, no entanto, questão estranha ao objeto desta ação declaratória, reduzindo ao licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador, bem incorpóreo sobre o qual, não se cuidando de mercadoria, efetivamente não pode incidir o ICMS; por isso, não conheço do recurso: é o meu voto.

Apesar de o recurso não ter sido julgado pelo pleno, mas pela 1ª Turma, e não possuir repercussão geral, inexistente na época, não demorou muito para que os Estados passassem a utilizar o entendimento como base para a cobrança de ICMS sobre os softwares de prateleira e, com o tempo, até mesmo em relação aos softwares em sentido amplo.

De fato, até esse momento, como mostra trecho da decisão que julgou o recurso especial interposto pela Fazenda Estadual do Estado de São Paulo, não havia distinção sobre a atividade mercantil dos softwares. O entendimento era o de que constituía prestação de serviço, inclusive constante no Decreto-Lei n. 406/68, na Lista de Serviços[4], itens 22 e 24:

O programa de computador não se confunde com o seu suporte físico (disquete, fita cassete ou chip). Não é uma coisa material corpórea e não pode ser considerado mercadoria, para fins de incidência do ICMS. Orlando Gomes, na obra citada, esclarece que: “O entendimento dominante é de que esse trabalho é atividade criativa de quem o executa e que o seu resultado é uma obra (serviço) original, que exige esforço intelectual típico da personalidade do seu criador”. Para ele o programa de computador é um serviço. Os programas de computador são protegidos pela Lei n. 5988, de 14 de dezembro de 1973, que regula os direitos autorais (Lei n. 7.646/87, artigo 2º). […] O programa de computador não é vendido. Sua exploração econômica é através de ‘contratos’ de licença ou de cessão […] Assim, não resta a menor dúvida de que a exploração econômica de programas de computador, mediante contratos de licença ou de cessão, está sujeita apenas ao ISS. Sobre ela não incide Imposto de Circulação de Mercadorias.

No entanto, em pouco tempo, o entendimento da Corte Superior, de que o ICMS deveria incidir sobre os softwares de prateleira, revelou-se obsoleto. Com o surgimento de novas maneiras de oferecimento de software, por meio de troca de dados, as receitas de ICMS advindas da aquisição de softwares despencaram, já que a sua transação utilizando invólucros físicos foi entrando em desuso. A perda de receita revelava-se ainda mais preocupante tendo em vista o escopo que a economia da internet tomou[5].

É nesse contexto de mudança tecnológica que o STF, ao julgar a medida liminar da ADI 1945/MT, ajuizada visando a declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual n. 7.098/98, do Estado do Mato Grosso, estendeu o critério material do ICMS de modo a abarcar os softwares não apenas transacionados de maneira física, mas por outros meios. O argumento era justamente a necessidade de não se restringir a interpretação do texto constitucional frente aos novos tempos, assim como o fato de que o ICMS já incidia sobre bens não corpóreos, notavelmente, a energia elétrica. O próprio software de prateleira não seria exatamente corpóreo, mas apenas um invólucro para a sequência de códigos binários capaz de transmitir o seu conteúdo — como resultado não haveria diferença entre adquirir um software em um disquete ou por meio de download:

Portanto, se o argumento é de que bem incorpóreo não pode ser objeto da incidência de ICMS, o argumento valeria também para o caso de bens incorpóreos vendidos por meio de bens materiais. Haveria uma clara contradição da jurisprudência do STF. Por todo o exposto, indefiro a cautelar nesse ponto para entender que o ICMS pode incidir sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados, julgando assim, em sede liminar, pela constitucionalidade dos art. 2º, § 1º, inciso VI e art. 6º, § 6º, da Constituição.

Consequentemente, uma série de Estados passou a alterar a sua legislação de modo a abarcar todas as aquisições de software com base no fato de que, agora, o ICMS poderia incidir sobre mercadorias não corpóreas.

  1. As alterações legislativas de Estados e Municípios

Inicialmente, em 2015, o Estado de São Paulo publicou o Decreto 61.522/15, que revogava antiga metodologia de cálculo do ICMS e, como resultado, possibilitava a sua incidência sobre softwares, independentemente de suporte físico. Em sentido semelhante, sobreveio o Convênio ICMS CONFAZ 181/15, que abriu portas para uma série de Estados incidirem ICMS sobre softwares padronizados.

Após, o Estado de São Paulo, por meio da Decisão Normativa CAT n. 04 de 2017, entendeu que o núcleo para incidência de ICMS seria a padronização e a massificação na distribuição do software, e não o fato dele ser oferecido no aspecto corpóreo, a despeito do que asseveram doutrinadores como Paulo de Barros Carvalho:

O étimo do termo ‘mercadoria’ está no latim mercatura, significando tudo aquilo susceptível de ser objeto de compra e venda, isto é, o que se comprou para pôr à venda. Evoluiu de merx, mercis (sobretudo no plural: merces, mercium), referindo-se ao que é objeto de comércio, adquirindo, na atualidade, o sentido de “qualquer objeto natural ou manufaturado que se possa trocar e que, além dos requisitos comuns a qualquer bem econômico, reúna outro requisito extrínseco, a destinação ao comércio. Não se presta o vocábulo para designar, nas províncias do direito, senão coisa móvel, corpórea, que está no comércio[6].

Como reação, os Municípios também passaram a considerar que a incidência de ISS abarcaria todos os softwares, independentemente da forma de aquisição, com base na disposição do item 1.05 da Lista Anexa da Lei Complementar 116/03. Exemplo disso é o Município de São Paulo que, por meio do Parecer Normativo n. 01 de 2017, passou a adotar entendimento nesse sentido.

Dessa forma, o contribuinte se viu, muitas vezes, bitributado, por Estado e Município. Sobrava ao STF o papel de pacificar de vez a questão, de modo a decidir a qual ente federativo caberia tais receitas, assim como resolver a situação dos contribuintes que haviam ingressado com ações visando afastar a cobrança de um tributo ou de outro, ou, ainda, que eram sujeitos passivos de execuções fiscais.

    1. O novo entendimento do Supremo Tribunal Federal

O STF firmou, então, novo entendimento, ao examinar o resultado de mérito de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade – a ADI 1945/MT, já mencionada e de relatoria da Ministra Carmen Lúcia, tendo a sua decisão liminar influenciado o conflito entre Estados e Municípios, e a ADI 5659/MG, relatada pelo Ministro Dias Toffoli, e proposta pela Confederação Nacional de Serviços contra o Decreto estadual n. 48.877/15 de Minas Gerais e outros diplomas legais.

No caso da ADI 1945, a Ministra Relatora Carmen Lúcia defendeu posição em sentido semelhante à medida liminar, ou seja, a possibilidade de o ICMS incidir sobre mercadorias não corpóreas, assim como o entendimento de que o licenciamento ou cessão de direitos não faz com que o programa de computador ou o software se constitua em prestação de serviços, ou seja, para a Ministra, no fundo, não estaria presente uma relação jurídica de fazer, e sim de dar.

No entanto, o entendimento inaugurado pelo Ministro Dias Toffoli logrou-se vencedor, no sentido de que o ISS deve incidir sobre a totalidade das aquisições por meio de softwares, levando em conta o fato de que a Lei dos Direitos Autorais, Lei 9.609/98, estabelece que o conceito de software está intimamente relacionado com a proteção da propriedade intelectual:

Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.

Cabe salientar que a lei em questão, quando fala sobre transferência, ou circulação do software, estabelece, em seu art. 11, parágrafo único, que:

[…] é obrigatória a entrega, por parte do fornecedor ao receptor de tecnologia, da documentação completa, em especial do código-fonte comentado, memorial descritivo, especificações funcionais internas, diagramas, fluxogramas e outros dados técnicos necessários à absorção da tecnologia.

Percebe-se que a efetiva circulação ou transferência do bem é tratada pela lei de maneira bastante específica, mediante o cumprimento de determinadas obrigações acessórias, que não envolvem o simples fornecimento do software.

Também nesse sentido, o Ministro Relator Dias Toffoli chamou atenção para o fato de que a elaboração de um software resulta do esforço humano, sendo irrelevante que tenha sido produzido mediante encomenda ou que seja padronizado, bem como a maneira com que foi disponibilizado.

Na verdade, atualmente, percebe-se que se trataria de uma operação mista ou complexa, envolvendo não apenas a obrigação de dar um bem digital, mas também uma obrigação de fazer, presente no esforço intelectual ligado aos demais serviços prestados ao usuário, como por exemplo, o help desk, a disponibilização de manuais, atualizações tecnológicas e outras funcionalidades previstas no contrato de licenciamento ou de cessão de uso.

A maioria dos ministros (Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Luiz Fux) concordou com o ministro relator. O entendimento vai ao encontro da legislação nacional que, por meio da Lei Complementar 116/03, fixou a incidência de ISS sobre o licenciamento ou a cessão de uso de softwares.

O julgamento foi objeto de modulação de efeitos, ou seja, estes seriam produzidos conforme a adequação às hipóteses formuladas pelos Ministros, com marco temporal consistindo na publicação da ata do julgamento:

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  1. Qual a perspectiva para a tributação dos softwares?

Mesmo acertada, a decisão do STF afastando a tributação dos softwares pelo ICMS não resolve todos os problemas envolvendo o assunto. Em um nível prático, diversas questões foram deixadas em aberto pela decisão, dentre as quais está o seu reflexo na tributação federal. Isso, pois, a alteração da origem da receita, se oriunda de venda de mercadoria ou de prestação de serviço, impactaria diretamente na definição do coeficiente para incidência da alíquota sobre a receita no cálculo do lucro presumido.

Deve-se destacar, também, que há ainda intensa disputa entre os municípios sobre o local da tributação, se no estabelecimento prestador, ou no adquirente.

Por último, o avanço incessante da tecnologia, bem como os desafios impostos pela utilização, no campo do direito, de conceitos fechados como “mercadorias” ou “serviços”, sem uma hermenêutica correspondente[7], ocasionará disputas inescapáveis nos próximos anos.

No caso do conceito de “mercadoria”, quando confrontado com as atualizações mercadológicas impostas pela economia digital, com conceitos como o de metaverso, o de internet das coisas, e a cada vez mais difícil tarefa de separar o que consiste no hardware e no software, torna-se obsoleto se não for objeto de uma hermenêutica adequada com os tempos modernos.

Prova disso é que o Estado de São Paulo, em contramão com a decisão do STF, vem tributando o software quando este é indissociável do hardware. Situações como essa se tornarão mais frequentes enquanto se utilizar os conceitos jurídicos trazidos pelo legislador, como “serviço”, ou “mercadoria” de maneira rígida, esquecendo das máximas da ciência interpretativa do direito, bem como a sua capacidade de se adaptar à realidade externa.

Também há decisões conflitantes nos tribunais estaduais no que diz respeito à tributação de serviços de streaming e de SaaS[8] (Software as a service). Tanto o TJSP (Recurso de Apelação n. 1035654-08.2019.8.26.0053), quanto o TIT (AIIM n. 4069824-5, 2018), já julgaram a favor da incidência de ICMS em operações com transmissão eletrônica de dados[9].

Percebe-se que, nos próximos anos, diversos temas correlatos poderão ser alvo de novos entendimentos pelo STF, o que pode acarretar, até mesmo, na modificação do entendimento exarado nas ADI 5459 e 1945.


[1] Doutrinadores como Hugo de Brito Machado, entendem que não haveria necessidade nem mesmo de mudança de propriedade, na circulação de mercadoria, desde que haja deslocamento possessório, em direção à fonte do consumo (MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos fundamentais do ICMS. 2. ed. São Paulo: Dialética, 1999).

[2] Lei Complementar n. 87/96. Art. 2° O imposto incide sobre: I - operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares.

[3] A proteção jurídica do software e a internet. Lisboa: Dom quixote, 1998.

[4] 22. Assessoria ou consultoria de qualquer natureza, não contida em outros incisos desta lista, organização, programação, planejamento, assessoria, processamento de dados, consultoria técnica, financeira ou administrativa; 24. Análises, inclusive de sistemas, exames, pesquisas e informações, coleta e processamento de dados de qualquer natureza.

[5] Segundo o IDC, a receita do setor de software movimentou R$ 44 bilhões em 2020. Fonte: Valor econômico.

[6] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 648.

[7] Diante da complexidade da realidade, é necessário a delimitação do objeto do conhecimento que está no corte epistemológico onde o estudioso do direito deverá fazer abstração de uma parte daquela realidade de acordo com seu nível de compreensão. Assim, tal objeto não representa toda a realidade, e deve ser construído através de uma linguagem que o insira no sistema jurídico. BARBOSA, Jéssyca Verucy R; DIAS, Fabiano Fernandes et al. Tributação sobre o licenciamento de uso de software e a definição do conceito de “mercadorias”: entre o texto e o conceito. Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 147, p. 140.

[8] “O software as a service (SaaS), por sua vez, é recurso que possibilita a utilização de software executado sobre a infraestrutura em nuvem, permitindo que o usuário acesse o software por meio de qualquer dispositivo conectado à internet.” BITTENCOURT, Fernando. Desafios da tributação do software as a service: Uma análise sob as perspectivas do ICMS e do ISS. Dissertação de Mestrado apresentada à Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2021.

[9] OLIVEIRA, Eduardo Alves, D. e Verônica Aparecida Magalhães da Silva. Tributação: Temas Atuais. Disponível em: Minha Biblioteca, Grupo GEN, 2022.