Sobre o processo administrativo fiscal
O cumprimento do devido processo legal nos julgamentos administrativo-fiscais legitima o título executivo unilateralmente constituído pelo ente político tributante, através da disponibilização ao contribuinte de todos os instrumentos legais com os quais se possa demonstrar a improcedência da cobrança que lhe é imposta, em um julgamento técnico, imparcial e realizado conforme os princípios que norteiam o Direito Tributário.
Daí a importância das regras que regulam o exame da procedência dos lançamentos pelos conselhos de contribuintes, como órgãos técnicos e paritários que examinam e julgam administrativamente os créditos tributários que dão ensejo àquele título.
Dessa maneira, ao Fisco é possibilitado confirmar a fundamentação do lançamento realizado e, ao contribuinte, a oportunidade de se manifestar sobre a regularidade e existência do débito, o que, como nas relações privadas, legitima a sua execução. Disso necessariamente decorre que o Estado, ao exercer essa função judicatória, deve imprescindivelmente observar os limites delineados na própria Constituição Federal.
Limites esses cristalizados nos princípios da legalidade, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da segurança jurídica, da impessoalidade e da moralidade administrativa, entre tantos outros.
Tais preceitos são limitações ao poder de tributar impostas pela Carta Maior numa clara demonstração de que a atividade de cobrança de tributos por parte do Estado, em que pese o interesse público que a fundamenta, deve ser interpretada como exceção ao direito de propriedade também constitucionalmente assegurado a todos os brasileiros, pelo que as regras a ela aplicáveis devem ser interpretadas de forma restritiva à atuação do Estado e ampliativa no que diz respeito aos direitos assegurados aos contribuintes.
O que é o voto de qualidade?
A par disso, é comum o voto de qualidade nos conselhos administrativos tributários.
No caso do processo administrativo fiscal em âmbito federal, o artigo 25, parágrafo 9º, do Decreto 70.235/72, recepcionado com força de lei pela CF/88, prevê o emprego do voto de qualidade pelo presidente da turma em caso de empate.
Tal dispositivo não só introduziu o voto de qualidade como forma de desempate, como também determinou que (i) este voto caberia ao presidente da turma e (ii) o cargo de presidente fosse, sempre, exercido por conselheiros representantes da Fazenda Nacional.
Assim, na prática, o voto de qualidade possibilita que a Fazenda Nacional imponha seu entendimento em caso de empate nos processos administrativos fiscais.
Não se trata de um voto de desempate comum, mas de uma certeza de que o Fisco sempre ganhará: uma espécie de in dubio pro fisco, que contraria toda a construção histórica do devido processo legal e, até mesmo, do Estado de Direito.
Desse modo, o voto de qualidade no CARF vai de encontro ao disposto no art. 112 do CTN, porque esse dispositivo determina que se interpreta a dúvida tributária de forma mais favorável ao contribuinte.
No caso de São Paulo, o voto de qualidade está previsto no artigo 61 da Lei estadual nº 13.457/09. Assim como no voto de qualidade no Carf, o do TIT-SP também é de competência do Presidente da Câmara.
A particularidade é que o TIT-SP, na instância ordinária, tem uma paridade entre presidentes de Câmara representantes do Fisco e dos contribuintes, de modo que também existem casos desempatados com voto de qualidade a favor dos contribuintes.
Em razão disso, existem casos idênticos decididos antagonicamente, simplesmente porque o colegiado ora era presidido por representante do fisco, ora dos contribuintes.
Do julgamento sobre o voto de qualidade do Carf
Dito isso, verifica-se que o voto de qualidade era o método de desempate utilizado no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf até 2020.
Contudo, a Lei do Contribuinte Legal, Lei nº 13.988/2020, determinou a extinção do voto de qualidade nos seguintes moldes:
Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o §9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.
Diante da nova norma, foram propostas no Supremo Tribunal Federal (STF) as ADI 6.399, 6.403 e 6.415 defendendo, dentre outros pontos, a inconstitucionalidade formal, decorrente de vício no processo legislativo, do art. 28 da Lei n. 13.988/2020, uma vez que este não teria pertinência temática com a MP n. 899/2019, que objetivava disciplinar, no plano federal, o instituto da transação tributária.
Os processos tramitam no Plenário Virtual do STF apensados à ADI 6.399 e o julgamento, até o momento, conta com cinco votos favoráveis aos contribuintes, tendo sido suspenso por um pedido de vista do ministro Nunes Marques.
Dentre os votos já proferidos, destaca-se o voto do ministro Luís Roberto Barroso que posiciona muito bem a questão em debate.
O ministro defendeu, corretamente, que o voto de qualidade atribui ao presidente de turma julgadora o poder de proferir dois votos: um ordinário e outro de desempate, o que aponta para uma sistemática de flagrante inconstitucionalidade: i) em face da composição paritária do Carf, entre representantes da Fazenda e do Fisco; ii) em razão de sua subordinação ao Ministério da Economia, o que indica sua integração à estrutura de uma das partes no processo e que iii) tal voto de desempate é prerrogativa exclusiva do presidente das turmas julgadoras, posição sempre ocupada por representante do Fisco.
Esses aspectos ilustram o desequilíbrio instalado no método de desempate pelo voto de qualidade, o que viola sem sombra de dúvidas a paridade entre as partes necessária em cada disputa processual. Nesse contexto, a nova norma decidiu mudar a sistemática de desempate, proibindo o voto de qualidade, atuando o Poder Legislativo dentro de sua margem de discricionariedade normativa.
Com isso, passa a prevalecer o princípio do in dubio pro contribuinte, como critério de desempate, o que privilegia o amplo espectro constitucional de proteção de direitos e garantias fundamentais do contribuinte contra eventuais excessos cometidos pelo Estado.
Sobre o julgamento do voto de qualidade do TIT-SP
É à luz das premissas supra que, acertadamente, o desembargador Ferreira Rodrigues, do Tribunal de Justiça de São Paulo -TJSP, relator do processo nº 0033821-63.2021, proferiu seu voto.
Importante esclarecer, nessa altura, que o tema foi levado à apreciação do TJSP após a Câmara Superior do TIT-SP manter, por voto de qualidade, um auto de infração que exigia recolhimento de ICMS. Diante disso, o contribuinte impetrou um mandado de segurança solicitando a anulação da autuação, em razão da inconstitucionalidade do método de desempate.
O acórdão que julgou o apelo da Autora nos autos do mandamus citado determinou a instauração de Incidente de Inconstitucionalidade do artigo 61 da Lei estadual nº 13.457/09, sob invocação da Súmula Vinculante nº 10 do Supremo Tribunal Federal e das normas contidas nos artigos 97 da Constituição Federal e 948 do Código de Processo Civil, tendo determinado a remessa dos autos ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça para deliberação.
Por ocasião do julgamento pelo órgão especial, o relator prolatou seu voto entendendo que “O voto de qualidade é inconstitucional, e assim deve ser declarado, tanto quando beneficia a Fazenda ou o contribuinte. O que importa é que o voto duplo de um dos juízes é incompatível com a imparcialidade”.
Destacou ainda que, se houver empate no julgamento de matéria tributária, por cortes administrativas, a decisão deverá ser obrigatoriamente a favor do contribuinte, o que atrai inevitavelmente a aplicação do artigo 112 do Código Tributário Nacional, que determina que, em caso de dúvida, “interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado”.
O próximo desembargador a votar naquela ocasião, Moacir Peres, pediu mais tempo para analisar o tema, adiantando que seu posicionamento tende a ser favorável ao contribuinte, uma vez que concorda que a aplicação do art.112 do CTN.
No que tange à discussão do TIT-SP, observa-se que, na essência, se vale dos mesmos fundamentos do que se discutiu no Carf, dentro da lógica do princípio in dubio pro contribuinte.
Acrescenta-se oportunamente que, caso o TJSP finalize o julgamento do incidente de inconstitucionalidade, fixando o entendimento de que a regra de desempate é inconstitucional, os autos de infração estaduais que foram mantidos por voto de qualidade poderão sofrer revisão.
Além disso, imprescindível notar que, ainda que não se trate de um julgamento de tribunal superior, com os efeitos das sistemáticas de recursos repetitivos ou de repercussão geral, o resultado desse julgamento no tribunal paulista será, por certo, precedente regional de impacto significativo no debate sobre a validade dos mecanismos de desempate dos demais tribunais administrativos de composição paritária.
Por fim, há que se considerar que o entendimento do TJSP a respeito da matéria pode ser endossado pelos tribunais superiores, caso as partes interponham recurso especial no STJ e recurso extraordinário no STF.