Mais um aspecto controverso acerca do regime não cumulativo, a transferência de saldo credor de ICMS acumulado em virtude da exportação tem sido objeto de inúmeros entraves judiciais no âmbito dos Tribunais de Justiça.
Sabe-se que a não cumulatividade do ICMS, na forma prevista pelo art. 155, §2º, inciso I, da Constituição Federal[1], visa a evitar a incidência em cascata do referido imposto, impedindo a tributação repetida de um mesmo produto ou serviço ao longo de todas as fases da cadeia produtiva.
Essa finalidade é alcançada por meio do creditamento de valores relativos a determinados custos e despesas operacionais despendidos pelo contribuinte, isto é, valores correspondentes ao imposto cobrado na aquisição de mercadorias e serviços destinados à sua atividade-fim, os quais são deduzidos do montante de ICMS a ser pago nas operações de saída.
Todavia, não são todas as saídas que atraem a incidência do mencionado imposto, como é o caso daquelas que destinam mercadorias ou serviços ao exterior.
Isso, porque a Constituição Federal, com o intuito de estimular a competitividade brasileira no mercado externo, estabeleceu em seu art. 155, §2º, X, “a” [2], uma imunidade sobre as operações de exportação, proibindo ao legislador ordinário a instituição do ICMS nessas hipóteses.
Nesse consectário lógico, a fim de alcançar a plenitude da imunidade constitucional, o próprio constituinte assegurou expressamente a manutenção e o aproveitamento do imposto cobrado nas operações anteriores.
Trata-se de uma garantia constitucional que visa, justamente, à concretização do princípio da não cumulatividade, já que possibilita que valores pagos a título de ICMS nas etapas anteriores sejam efetivamente recuperados.
Ocorre que, grande parte das empresas que realizam exportação exercem exclusivamente ou de forma preponderante essa atividade. Dessa forma, acumulam inevitavelmente créditos de ICMS na sua conta gráfica.
Assim, com o intuito de garantir o preceito constitucional previsto artigo 155, §2°, X, “a”, a Lei Complementar nº 87/1996, conhecida como “Lei Kandir”, assegurou a transferência dos saldos credores de ICMS decorrentes de operações de exportação para outros estabelecimentos do mesmo contribuinte localizados no mesmo Estado ou, havendo saldo remanescente, para terceiros dentro do mesmo Estado[3].
Ressalta-se que, ao fazê-lo, a mencionada lei não impôs qualquer restrição à utilização do saldo credor, sendo mera formalidade a emissão de documento que reconheça a existência do crédito.
Em outras palavras, estabeleceu-se uma norma de eficácia plena, que dispensa regulamentação pelos Estados e Distrito Federal. Afinal, tendo a Constituição Federal reservado à lei complementar a normatização da matéria, função devidamente exercida pela LC 87/1996, revela-se incabível qualquer restrição imposta pelo legislador ordinário ao direito creditório do contribuinte.
A despeito disso, diversos Estados extrapolaram a regulamentação da Lei Kandir e estabeleceram novas limitações às hipóteses por ela previstas para o aproveitamento do crédito acumulado de ICMS. Impuseram, dessa forma, verdadeiros obstáculos para as transferências permitidas, em clara violação ao princípio da não cumulatividade e à reserva da lei complementar.
A título de exemplo, o Estado de Goiás limita a transferência a terceiros a 30% (trinta por cento) do valor da operação ou da prestação, bem como exige a prévia existência de relação negocial entre as partes cedente e cessionária, dentre outras condições[4].
Ainda, existem diversos outros Estados que estabelecem limitações que dificultam a utilização dos créditos pelas exportadoras, como é o caso do Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, entre outros[5].
Contudo, a jurisprudência pátria tem se posicionado a favor dos contribuintes, tendo o Superior Tribunal de Justiça decidido, em diversas oportunidades, pela ilegalidade das limitações impostas por leis estaduais à utilização de créditos de ICMS acumulados em virtude de exportação, em vista da autoaplicabilidade do artigo 155, §2º, X, “a”, da CF/88, e do artigo 25, §1º, da LC 87/96[6], posicionamento seguido por diversos Tribunais de Justiça[7].
Com base nesse entendimento, novas demandas são protocoladas a fim de afastar os requisitos e condições estabelecidos pelo legislador ordinário, uma alternativa encontrada pelos contribuintes diante dos diversos entraves com os quais se deparam.
Objetiva-se, dessa forma, garantir o direito à transferência dos mencionados créditos de forma ilimitada, nos termos definidos pela Constituição Federal e pela Lei Complementar 87/96, sem, portanto, a sujeição a quaisquer das restrições ilegais impostas pelas legislações estaduais.